domingo, 15 de agosto de 2010

FALA HÉLIO - Lygia Pape entrevista Hélio Oiticica

Hélio Oiticica voltou agora ao Brasil, depois de passar 7 anos fora, em Nova Iorque. Pretendíamos fazer uma entrevista sobre seu trabalho e o que pensa hoje esse artista que participou dos Movimentos Concreto e Neoconcreto e que, em 1967, na mostra Nova Objetividade Brasileira, no MAM do Rio, apresentou sua proposta denominada Tropicália, seguida de textos teóricos (revista GAM) e que desembocaria no Tropicalismo, já então nas áreas de teatro, música e cinema. Mas algumas vezes o próprio Hélio inverteu a posição de entrevistado e passou a indagar sobre coisas acontecidas aqui e eventualmente com a nossa participação.Optamos pela permanência de tudo por acharmos que ajudaria a entender melhor o pensamento de Hélio.

A Entrevista:


L. Pape – Hélio, você está chegando agora, quando de repente começamos a ouvir por todos os lados falar em arte latino-americana, inicia-se uma Bienal de arte latino-americana etc. Para você que viveu fora, em Nova Iorque, que perspectiva teria dessa problemática? Qual seria seu conceito de arte latino-americana que, segundo creio, foi colocado pela primeira vez por Mário Pedrosa?

H. Oiticica – Eu nunca gostei de separar arte latino-americana como coisa isolada, por várias razões. Uma é que eu não gostaria de estar incluído nisso. Outra, é que acho muito provincianismo na maneira como se coloca, além de que América Latina é formada por coisas heterogêneas e tudo isso torna tudo muito problemático. Por exemplo, o Brasil não tem nada a ver com o Peru e outras coisas assim. Acho que fica uma coisa artificial – uma maneira forçada --, aliás é forçada, mesmo. Em Nova Iorque, eu já era contra, porque achava que era uma minoria fabricada; essa arte latino-americana mantinha os artistas separados em uma minoria fabricada, num país que já está cheio de minorias. Então, fica uma coisa reacionaríssima, ao meu ver. Mas tudo isso é em relação à situação de lá, em Nova Iorque, que não tem nada a ver com aqui, mas eu acho que o Brasil tem mais a ver com os Estados Unidos do que com os outros países da América Latina. Ou com algumas tradições européias. Por exemplo, a Alemanha está mais perto do Brasil do que o Peru, sob um certo aspecto. Em termos de linhagem artística, é verdade. Eu não sei o que as pessoas querem definir aqui quando falam em arte latino-americana. Fica uma coisa muito problemática. Seria a arte feita aqui? Em geral os exemplos que dão é que são coisas importadas – se é que se pode dizer isso – coisas de segunda mão. Também estou ouvindo falar sobre esta Bienal em que o tema proposto seria “mitos e magia”, mas isso já são conceitos filosóficos, e mito e magia não são um privilégio latino-americano, pelo contrário.

a entrevista  continua (clique abaixo)


L. Pape – Agora, quando falam em arte latino-americana surge o problema da imagem, há uma tentativa de redução a uma determinada imagem.

H. Oiticica – O problema da imagem me parece muito importante pois acho que foi importado errado, uma coisa ruim, mas tudo é importado e tudo não é.

L. Pape – Esse problema seria resolvido em um processo de assimilação antropofágico. Alguns artistas estão dizendo que a arte acabou, e você, como vê isso?

H. Oiticica – Eu não gosto é dessa relação de arte e real, essa dicotomia, que para mim já não existe mais, há muito tempo, aliás nunca existiu. Isso de falar “fui da arte para o real”, como se fossem duas realidades, não tem sentido, estou sempre ouvindo isso: o real e a arte. Sartre definiu isso da melhor maneira. Antes havia a separação entre o coletivo e a arte, agora, há uma emergência do coletivo, ele emerge, mas a gente faz parte dele. Antes havia uma separação entre esse coletivo e a arte. Agora, nesta fase de transição, em que o coletivo emerge, nós também fazemos parte do processo. Algumas pessoas continuam na posição anterior, em que o artista estava separado do coletivo. Isto é um processo social, ético, todos fazendo parte de um mesmo processo. Estamos sem dúvida numa fase de transição. Então, fazem essa dicotomia, principalmente os artistas plásticos. Quanto ao problema da arte ter acabado, eu sinto hoje, aqui, um clima de julgamento. Realmente, quanto à pintura e à escultura, elas não são mais o que eram, mas isso é parte do meu passado. Para mim esses meios já foram superados, mesmo. Mas aí é um problema específico. Hoje eu não tenho nada a fazer no espaço de uma galeria de arte, por exemplo. Mas poderia ter. Agora, galeria como se concebe no Brasil ainda é uma coisa para expor quadros e esculturas.

L. Pape – Hélio, esse tipo de galeria seria então um tipo de mercado institucionalizado
e o artista estaria em função dele?

H. Oiticica – Eu não teria interesse em ficar em função desse mercado, mas eu posso criar mercado. Você poderia criar também. Por exemplo, dizem que poster não vende, principalmente em galerias. Mas eu garanto que eu posso criar uma situação de venda. Fiz um poster-poema com Romero de um lado em foto, e de outro estava impresso um poema. Na medida em que as pessoas dizem que isto é comercial, eu posso transformá-lo em algo que vende.

L. Pape – Mas isso decorre de seu prestígio pessoal.

H. Oiticica – Exatamente, e isso é o mercado brasileiro. Se amanhã você disser qualquer coisa numa página de um jornal, aquilo que você diz é que se transforma em mercado. Amanhã se você disser: “Lygia Pape vende ‘objetos de sedução’ por tanto”, esse passa a ser o preço de mercado. Não existe aqui esse negócio de avaliar o preço como se fosse um tipo de capitalismo desenvolvido. Como se estivéssemos num país de capitalismo desenvolvido. O mercado de arte brasileiro é o prestígio pessoal das pessoas. O seu nome, a hora que você quiser, pelo preço que você fizer. Sob esse aspecto é um mercado alienado. Vendem-se coisas por um valor que elas não têm, como os pintores primitivos, por exemplo. Você, por exemplo, vendeu os saquinhos “objetos de sedução” em sua exposição?

L. Pape – Sim eu vendi, mas a Cr$ 1,00 cada, eu pretendia contestar o próprio mercado, desmistificá-lo. Em São Paulo, a Galeria de Arte Global fechou imediatamente a minha exposição. No Rio (MAM), a exposição funcionou normalmente, mas era interessante ver o novo tipo de consumidor de arte, como o varredor de rua, por exemplo, comprando uma “obra de arte”. De repente o espaço da galeria (ou o museu) passou a ter um novo significado para ele.

H. Oiticica – Neste caso a galeria funciona de uma maneira nova. E por que não?

L. Pape – Infelizmente a exposição foi fechada em São Paulo, pela própria direção da galeria.

H. Oiticica – Incrível, como não havia quadros eles recusaram a exposição. É curioso, todo o mundo faz essa politicazinha: coloca ao centro as inovações e nas paredes quadrinhos para vender. Sua exposição, como era radical, não foi entendida; deve ter ficado parecendo uma farmácia, como essas duas áreas de cor: vermelho de um lado e azul do outro, e os saquinhos dentro dos cubos de luz. Deve ter ficado parecendo também um supermercado. Hoje, eu prefiro ir a um supermercado do que ir ver quadrinhos nas paredes, então agora quando aparecem coisas escritas nas paredes, eu não agüento ficar em pé lendo coisas com letrinhas pequenininhas na parede; agora, é uma mania. Em Nova Iorque estava cheio dessas diluições. Até o termo arte conceitual, não posso agüentar. Acho das coisas mais infelizes que apareceram. Quando a idéia de conceito já foi designada por Nietzsche.

L. Pape – Fale algo do trabalho passado.

H. Oiticica – De repente eu cheguei à conclusão que tudo o que eu fiz antes era um prólogo para o que está aparecendo agora. As coisas escritas, todas são uma espécie de amadurecimento e são importantíssimas. As pessoas ficam perguntando e comentando sobre o espaço que vai das maquetes do Central Park em Nova Iorque, em 1972, e o que estou apresentando em 1977. Como se houvesse um buraco, como se as coisas escritas nesse período não fossem nada. Além de participações minhas em algumas exposições, como a de Pamplona. Quando as coisas escritas eram projetos para serem feitos e programações. Esse material escrito é importantíssimo: há projetos para performances, projetos abertos e algo muito importante: projeto “C. C. – program in progress”, que acho mais importante do que work in progress.

L. Pape – Qual a diferença entre os dois?

H. Oiticica – Work in progress é como se fosse uma obra em etapas, como no “Finnegans Wake” de Joyce. Ao passo que, no “C. C. – program in progress”, a estrutura é muito mais aberta. É uma coisa que a pessoa mesma pode inventar, participar. Aliás, todo o mundo vai participar do “C. C. – program in progress”, as poucas pessoas para quem fiz a proposição não entenderam bem. Por exemplo, Guy Brett não desenvolveu nada. Ele tinha somente que levar; bem, esse era um negócio de unha, ele tinha que pegar uma lixa de unhas, chamava-se nail-file e é um tipo de lixa de unha de ferro. Aquilo, na realidade, era o que Haroldo de Campos me disse ser uma estereotipação de um caduceu, que é aquele símbolo dos médicos. São duas cobras que vão se enrolando numa coluna. A lixa tem mesmo uma forma curva, parecendo cabeça de cobra, aqueles risquinhos que formam a lixa de metal. A proposição “C. C.”, creio que número 7, seria o Guy Brett fotografar para formar o poema. As pessoas não assumem, como se fosse perda participar disso. Talvez pelo nome “C. C.”. Naquele momento as pessoas não entenderam e isso me inibiu, mas agora, não. Posso colocar todo tipo de gente para atuar, e é necessária a presença física.

L. Pape – Hélio, você está usando a cor em seus trabalhos, fale sobre isso.

H. Oiticica – Novamente ouço falar em retomadas. Vou falar em primeiro lugar em termos gerais para situar o problema da retomada. Essa maquete, que estou preparando para ser realizada aqui, não tem nada de retomada. Essas propostas não têm nada de voltar atrás. Por exemplo, uma delas era a descoberta do espaço urbano, e somente nesse caso seria uma retomada pois teria partido da maquete “Cães de caça”, que ainda seria uma coisa isolada do urbano, um projeto ideal, como se fosse aquilo que Mário Pedrosa dizia invitation au voyage baudeleriana, no urbano. Aquilo era para ser feito no espaço urbano, é claro, mas era uma coisa isolada, como se fosse uma invitation au voyage. Nessas outras não ocorre isso, é como se fosse a descoberta do espaço urbano mesmo, ou do espaço público. Mesmo que seja feito em um parque, pois parque ainda é um espaço urbano. Eu uso o nome de “penetrável” ainda, inclusive eles não têm nada a ver com a Tropicália. O nome não indica que seja uma retomada, pelo contrário, o que veio antes foi o prólogo de alguma coisa absolutamente nova. Como se fosse uma fundação. Os textos que escrevi antes eram a culminação de obras, eram a síntese de obras. Mas, agora, inicia-se algo inteiramente novo. Agora, o problema da cor. Senti a necessidade de usar a cor e isso é a descoberta da cor, e não tem nada com uma volta à cor, como disseram e vão voltar a dizer. Assim como já disseram que eu voltei para buscar as raízes que teria perdido. Isso eu acho uma coisa gravíssima, pois tem a ver diretamente com os processos de criação e de tudo. É uma coisa fundamental, e não se pode deixar para lá, pois isso desesclarece, inclusive a mim mesmo. Passa-se a acreditar no equívoco. Começam a falar tanto em raízes que se acaba acreditando por osmose.

L. Pape – É como se fosse uma doença.

H. Oiticica – É como uma doença que pega. Esse problema de volta as raízes é uma coisa subdesenvolvida, colonizada, que eu acho terrível no Brasil.

L. Pape – Também fazem-se julgamentos todos os dias.

H. Oiticica – É, julga-se tudo, como se fosse o dia do juízo final, isso é coisa colonizada da decadência judaico-cristã; é prestação de contas. Por exemplo, dei uma entrevista a um jornal do Rio e que tinha somente um caráter jornalístico e acabou virando um julgamento final. É como se tivesse chegado para prestar contas e julgar as pessoas e julgar a mim mesmo. E aí obrigam a pessoa a emitir um juízo sobre ela mesma, coisa que eu não sei fazer. Essa é a maneira mais perigosa de fazer um approach. Também perguntam muito: “o que você está fazendo?” e que é uma maneira de aproximar e afastar as pessoas, porque é a maneira de colocar a pessoa julgando ela mesma. Eu não sei nada, mas sei que estou nascendo, todos os dias. E sei de certas referências: por exemplo, sei da descoberta da cor, da descoberta do espaço urbano, que são coisas totalmente novas e que tudo o que veio antes era um prólogo, era um prelúdio. Essa coisa de cobrarem a obra passada que foi feita, como se fosse necessário fazer todos os dias uma série de atos para justificar o que você fez antes, e para dar continuidade. Quando a coisa criativa não é assim, a meu ver, cada coisa é uma inauguração nova. Tomei consciência disso fenomenologicamente, sentindo até no corpo, com o corpo, cada dia. Eu não sei de nada, por isso não posso dizer que nada acabou ou nada vai começar. Agora, uma coisa eu sei: o que acabou foram certas etapas, como certos trabalhos como os “bólides” que, de repente, no Natal, eu resolvi fazer, mas não tem nada a ver com os antigos “bólides”. São coisas feitas com a mão, vidros e cores e são outra coisa. Eu tinha alguns ready made guardados e de repente pensei em fazer alguma coisa para além desses ready made. Agora chamam-se “ready made topological landscapes” que, traduzindo é: “paisagem topológica ready made”. São vidros onde eu coloco uma cor, esse aqui era um vidro de mel, encho de líquido colorido com anilina e por fora desliza uma fita ou faixa de borracha também de cor, então você muda a paisagem conforme você quer, subindo ou descendo a fita, sem
dobrar, alterando a paisagem. Eu nunca pensei em voltar a mexer com as mãos, dessa maneira. E não se trata de retomada da cor, ou retomada dos “bólides”. Isso é uma verdadeira descoberta da cor. E cada vidro tem características diferentes, esse aqui tem a forma de bala e é enrugado, como costelas. O original era um vidro de cola americana. E a partir da forma do vidro eu achava a cor, descobria a cor. Isso tem a ver com os “bólides” mas não é mais representação como o “bólide” era, poderia dizer ainda, o fim da representação. Eu sei isso porque encontrei agora um “bólide” antigo e notei logo a diferença de approach. E o fato de ser ready made é muito importante também. Esse trabalho é algo que me interessa muito no momento, e estou com vontade de fazer milhares. Trouxe anilinas que não depositam, para não ser preciso agitar, mas também posso partir exatamente do oposto e colocar pigmentos que terão que ser agitados. Esses ready made são mágicos e quando a luz incide projetam-se nas paredes, modificando tudo. E olho sempre por eles, pela janela, para ver a paisagem.

L. Pape – É como se você tivesse adquirido uma sabedoria e um poder, que você usa hoje, quando quer. Você toca aqui ou ali e a coisa se transforma e não é uma coisa empobrecedora, redutora. Está no plano do poético.

H. Oiticica – Acho que a previsão disso eram as “C. C. – program in progress” onde eu propunha coisas às pessoas, como bem quisessem e elas tinham medo, como se tivessem medo da liberdade. Isso é horrível. Creio que li algo no “Crepúsculo dos Deuses” onde Nietzsche dizia que certas datas desencadeavam um pretexto para criar coisas, como os feriados ou o Ano Novo.

L. Pape – Não importa se você não lembra bem da citação, mas é lindo, porque desencadeia o processo criativo, bem longe dos romantismos de inspiração, e dentro de determinadas situações, bem definidas. Você assimilou um comportamento.

H. Oiticica – É, desencadeia, e agora os aniversários e feriados estão desencadeando minha atividade criativa.

L. Pape – Eu acho esses ready made mais intensos porque eles têm uma carga afetiva dentro da obra, na medida em que você faz para o aniversário de alguém, ele fica como que impregnado de uma carga afetiva, própria dele, naquele momento. E não importa o depois.

H. Oiticica – Também essa necessidade de fazer alguma coisa para ser fotografado, desencadeia algo. O “Parangolé”, que eu e Andréas Valentin fizemos para ser fotografado para a reportagem de um jornal, deveria ser de uma matéria especial que contrastasse com a cor azul do posto de salvamento escolhido como cenário. Usamos jornal, a textura do jornal deu o resultado desejado.

L. Pape – É como um comportamento gerador de outros comportamentos. De um sinal, parte-se em cadeia para outros sinais até formar um complexo organizado e que possui linguagem própria.

H. Oiticica – Esse posto foi escolhido por lembrar as obras de um arquiteto do neoplasticismo: J. J. P. Oud. Aliás, também a vanguarda russa e Sophie Taeuber Arp, entre outros, deveriam ser analisados cada dia. São fontes inesgotáveis de surpresas. São artistas fundamentais na formação de qualquer um. Indiretamente há a referência nessa foto do posto do Leblon.

L. Pape – Fale sobre o trabalho que você enviou à Bienal de São Paulo, passada, ou de 1977.

H. Oiticica – Não houve participação, meu trabalho-maquete continua inédito. Mandei o vídeo tape, pois em vez de mandar uma maquete enorme, manda-se um vídeo onde gravei o processo de construção e funcionamento e um texto descrevendo o uso do projeto. Mandei ainda os cortes laterais e a planta baixa para os arquitetos poderem construir. Isso evitou de mandar a partitura original. O texto está até hoje na censura e era somente uma descrição técnica.

L. Pape – Descreva o projeto.

H. Oiticica – É difícil fazer uma descrição, sem ver. Chama-se “Magic Square”, o nome tem que ser em inglês porque “square” quer dizer ao mesmo tempo quadrado e praça. É todo baseado no quadrado, e partindo da planta que eu fiz como uma colagem, um plano entrando por dentro do outro e que lembram coisas do Arp, do início. Trata-se de um papel parecendo papel de jornal, aliás são blocos, uns sobre os outros. Por cima disso estão colocados os painéis. São onze painéis de cinco por cinco metros, brancos dos dois lados e finos, leves. Um deles é fixo, os outros têm duas variações: alguns são pendurados e os outros são apoiados sobre rodinhas embutidas no chão. A diferença entre os dois tipos de painéis dão como resultado sensações diferentes – o barulho das rodas deslizando e o “antipeso” dos outros painéis dão duas experiências diversas. Levei seis meses para realizar a maquete, junto com arquitetos, pra detalhar o projeto. Os painéis tinham que ser alvíssimos, levíssimos e em vez de pintados deveriam ser recobertos com plástico branco, sem emenda. A área total é de vinte e cinco metros quadrados. Esse projeto deveria ser construído definitivamente, pois exige certos detalhes que não valeria a pena ser feito de maneira provisória, e é muito preciso. E não tem música e se constrói de silêncios e de branco sobre branco.

L. Pape – Então na medida em que as pessoas caminham pela área, o próprio pisar sobre a areia, o deslizar sobre as rodinhas dos painéis, o silêncio das folhas suspensas, constroem a própria música do projeto. Também acho que a referência do branco sobre branco remete à memória de Malevitch. Todo o construtivismo alimenta seus projetos, mesmo quando você usa de uma liberdade incrível, é como se fosse uma impregnação vigorosa e transformadora. Seu trabalho tem uma clara linguagem que vem de linhagens afins desde a Semana de Arte Moderna, e passa por toda uma vivência brasileira. Todos os elementos de nossa cultura estão latentes em sua obra, mas nunca são ilustrações. Mesmo as referências à vanguarda russa são alimentadoras de um comportamento aberto lúcido e que dimensiona o repertório brasileiro. E não se fala de raízes, e outras coisas mais. Essa maquete construída aqui, e usada por gente daqui, obviamente será alimentada por conceitos daqui. Até o pisar na areia vai ser diferente, o gesto ao deslizar os painéis terá um ritmo diferente, o olho também verá diferente. E isso tudo não tem nada a ver com raízes e nacionalismos. É algo que envolve o sentido de espaço-tempo, próprios.

H. Oiticica – Continuando a descrição, rodeando essa área de 25 x 25 metros quadrados colocaria grama. Seria o espaço mesmo da praça e por isso daria o nome de “Magic Square”. Imediatamente, associariam meu projeto como influenciado pelos “quadrados” de Klee ou Mondrian. Acho ótimo que associem, talvez façam parte de uma mesma linhagem, mas minha idéia não é “quadrados mágicos”, o nome de meu projeto é “Quadrado-Praça-Mágico”. Não acho muito bom, e creio que vou pedir aos irmãos Campos para traduzir.

L. Pape – Esse nome, desse jeito, dá uma elipse verbal, você vai da palavra “quadrado”, passa por cima de “praça” e vai cair em “mágico”, é uma coisa bem visual.

H. Oiticica – É importante frisar que não são quadrados, formas no espaço, como em Le Parc. Eu me lembro de que estava ouvindo um quarteto de Beethoven e de repente vi a estrutura pronta na minha frente – a estrutura lembrava a estrutura de quartetos, era uma experiência que me dava uma visão total da estrutura. Eu, antigamente, tocava música e podia ver os grupos de notas na minha frente. Foi a primeira vez que tive a sensação do espaço cúbico, do espaço ambiental, totalmente engendrado.

L. Pape – Quando realizei o “Livro da Criação” também tive essa visão da estrutura toda pronta, todas as unidades no espaço, mentalmente. É curioso, quase todos os antigos participantes do Movimento Neoconcreto têm hoje alguma referência com o espaço topológico: Lygia Clark após a dissolução do grupo cria o “Caminhando”, organizado a partir da fita de Moebius, que é um princípio do espaço topológico. Também trabalhei no projeto “Eat me – a gula ou a luxúria?”, sobre essa mesma fita de Moebius, agora considerando o espaço dentro e fora do MAM como um plano contínuo e reversível – a exposição acontecia dentro e fora, ao mesmo tempo.
Agora, Hélio, você me fala de suas “paisagens topológicas ready made” e que são também projetos dentro do mesmo princípio matemático. As três experiências são totalmente diferentes entre si, todas trabalhando dentro do mesmo princípio matemático e nenhuma, nunca, como uma mera ilustração do conceito.

H. Oiticica – Com referência ainda à maquete de São Paulo, quando me perguntam o que eu faço, sempre respondo: faço música, pois acho que isto está mais perto de música do que de outra coisa qualquer. E não se trata de coisa musical. É música. E quero ainda mais uma vez deixar bem claro que não retomei nada, como se tivesse perdido alguma coisa; como se as coisas que você tivesse feito antes estivessem perdidas. Você só retoma aquilo que você perdeu. Então se fala em retomada da cor, volta à cor etc. Pois se até os locais aonde você volta nunca são retomados – você descobre tudo de novo, a cada dia, como se fosse o primeiro. Falar em volta é complexo de filho pródigo – uma coisa judaico-cristã, decadente, que Nietzsche acusou há um século atrás e ninguém entendeu. Não há voltas, nem remorsos, nem retomadas. Isso é uma coisa mais do que resolvida em filosofia e psicanálise. Isto é um complexo de culpa cristã, tipo ressentimento. Trata-se de pensamento escravo. Voltar significa chegar ao céu, retomar. Trata-se da psicologia do escravo.

*Entrevista publicada na Revista de Cultura Vozes, Rio de Janeiro, ano 72, n. 5, p.363-370, 1978.

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